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O que a crtica?
[Crtica e Aufklrung]
Qu'est-ce que la critique? Critique et Aufklrung. Bulletin de la Socit franaise de philosophie,Vol. 82, n 2, pp. 35 - 63, avr/juin 1990 (Conferncia proferida em 27 de maio de 1978). Traduo deGabriela Lafet Borges e reviso de Wanderson Flor do Nascimento.
Henri Gouhier - Senhoras, Senhoritas, Senhores, gostaria, de incio, de
agradecer ao Sr. Michel Foucault por ter inscrito esta sesso no tempo de
estudos de um ano muito atribulado, j que ns o tomamos, eu no diria um dia
depois, mas quase dois dias depois de uma longa viagem ao Japo. o que
explica que a convocao enviada para esta reunio to lacnica; mas desse fato
a comunicao de Michel Foucault uma surpresa e, como se pode pensar que
uma boa surpresa, eu no farei esperar mais tempo ao prazer de ouvi-lo.
Michel Foucault - Eu vos agradeo infinitamente por ter me convidado a esta
reunio, frente a esta Sociedade. Creio j ter feito uma comunicao h dez
anos sobre um tema que era O que um autor?
Para a questo que gostaria de vos falar hoje, eu no dei ttulo. O Sr. Gouhier
bem quis dizer a vocs com indulgncia que em funo da minha estada no
Japo. Para dizer a verdade, uma muito amvel atenuao da verdade.
Digamos que, efetivamente, at esses ltimos dias, por pouco no tinha
encontrado ttulo; ou antes, tinha um que me perseguia mas que eu no queria
escolher. Vocs vero por que: foi indecente.
Na realidade, a questo que gostaria de falar a vocs, e que quero sempre vos
falar, : O que a crtica? Seria preciso tentar manter alguns propsitos em
torno desse projeto que no cessa de se formar, de se prolongar, de renascer
nos confins da filosofia, sempre prximo dela, sempre contra ela, s suas
custas, na direo de uma filosofia por vir, no lugar talvez de toda filosofia
possvel. E parece que entre a alta empreitada kantiana e as pequenas
atividades polmico-profissionais que trazem esse nome de crtica, me parece
que houve no Ocidente moderno (a datar, grosseiramente, empiricamente, nos
sculos XV-XVI) uma certa maneira de pensar, de dizer, de agir igualmente,
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uma certa relao com o que existe, com o que se sabe, o que se faz, uma
relao com a sociedade, com a cultura, uma relao com os outros tambm, e
que se poderia chamar, digamos, de atitude crtica. claro, vocs ficaro
espantados ao ouvir dizer que h alguma coisa como uma atitude crtica e que
seria especfica da civilizao moderna, ento que houve tantas crticas,
polmicas etc. e que mesmo os problemas kantianos tm, sem dvida, origensbem mais longnquas que aqueles sculos XV-XVI. Ficaro espantados tambm
de ver que se tenta procurar uma unidade para essa crtica, que ela parece
prometida pela natureza, pela funo, eu ia dizer pela profisso, disperso,
dependncia, pura heteronomia. Alm disso, a crtica existe apenas em relao
a outra coisa que no ela mesma: ela instrumento, meio para um devir ou uma
verdade que ela no saber e que ela no ser, ela um olhar sobre um domnioonde quer desempenhar o papel de polcia e onde no capaz de fazer a lei.
Tudo isso faz dela uma funo que est subordinada por relao ao que
constituem positivamente a filosofia, a cincia, a poltica, a moral, o direito, a
literatura etc. E, ao mesmo tempo, quais que sejam os prazeres ou as
compensaes que acompanham essa curiosa atividade de crtica, parece que
ela traz, de modo suficientemente regular, quase sempre, no somente alguma
rigidez de utilidade que ela reivindica, mas tambm que ela seja subtendida por
uma sorte de imperativo mais geral - mais geral ainda que aquela de afastar os
erros. H alguma coisa na crtica que se aparenta virtude. E de uma certa
maneira, o que eu gostaria de dizer a vocs era da atitude crtica como virtude
em geral.
Para fazer a histria dessa atitude crtica, h vrios caminhos. Eu gostariasimplesmente de sugerir a vocs aquele que um caminho possvel, ainda uma
vez, dentre outros. Proporei a seguinte variao: a pastoral crist, ou a igreja
crist enquanto ostentava uma atividade precisamente e especificamente
pastoral, desenvolveu esta idia - singular, creio eu, e absolutamente estranha
cultura antiga - que cada indivduo, quais sejam sua idade, seu estatuto, e
isso de uma extremidade a outra da sua vida e at no detalhe de suas aes,devia ser governado e devia se deixar governar, isto conduzir sua salvao,
por algum que o ligue numa relao global e, ao mesmo tempo, meticulosa,
detalhada, de obedincia. E esta operao de direcionamento salvao numa
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relao de obedincia a algum deve se fazer numa tripla relao com a
verdade: verdade entendida como dogma; verdade tambm na medida em que
esse direcionamento implica um certo modo de conhecimento particular e
individualizante dos indivduos; e, enfim, na medida em que esse
direcionamento se desdobra como uma tcnica reflexiva comportando regras
gerais, conhecimentos particulares, preceitos, mtodos de exame, confisses,entrevistas etc. Alm do que, no se pode esquecer o que, durante sculos, se
chamou na igreja grega techn technn e na igreja romana latina ars artium,
precisamente a direo de conscincia; a arte de governar os homens. Essa arte
de governar, claro, ficou por muito tempo ligada a prticas relativamente
limitadas e finalmente, mesmo na sociedade medieval, ligada existncia
conventual, ligada e praticada sobretudo em grupos espirituais relativamenterestritos. Mas eu creio que a partir do sculo XV e desde antes da Reforma,
pode-se dizer que houve uma verdadeira exploso da arte de governar os
homens, exploso entendida em dois sentidos. Deslocamento de incio em
relao a seu foco religioso, digamos se vocs querem laicizao, expanso na
sociedade civil desse tema da arte de governar os homens e dos mtodos para
faz-la. E depois, num segundo sentido, multiplicao dessa arte de governar
em domnios variados: como governar as crianas, como governar os pobres e
os mendigos, como governar uma famlia, uma casa, como governar os
exrcitos, como governar os diferentes grupos, as cidades, os Estados, como
governar seu prprio corpo, como governar seu prprio esprito. Como
governar, acredito que esta foi uma das questes fundamentais do que se
passou no sculo XV ou no XVI. Questo fundamental a qual respondeu a
multiplicao de todas as artes de governar - arte pedaggica, arte poltica, arte
econmica, se vocs querem - e de todas as instituies de governo, no sentido
amplo que tinha a palavra governo nessa poca.
No entanto, essa governamentalizao, que me parece to caracterstica
dessas sociedades do Ocidente europeu no sculo XVI, no pode estar
dissociada, parece-me, da questo de "como no ser governado?". Eu no querodizer com isso que, na governamentalizao, seria opor numa sorte de face a
face a afirmao contrria, "ns no queremos ser governados, e no queremos
ser governados absolutamente". Eu quero dizer que, nessa grande inquietude
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em torno da maneira de governar e na pesquisa sobre as maneiras de governar,
localiza-se uma questo perptua que seria: "como no ser governado assim,
por isso, em nome desses princpios, em vista de tais objetivos e por meio de
tais procedimentos, no dessa forma, no para isso, no por eles"; e se se d a
esse movimento da governamentalizao, da sociedade e dos indivduos ao
mesmo tempo, a insero histrica e a amplitude que creio ter sido a sua,parece que se poderia colocar deste lado o que se chamaria atitude crtica. Em
face, ou como contra-partida, ou antes como parceiro e adversrio ao mesmo
tempo das artes de governar, como maneira de suspeitar dele, de o recusar, de
o limitar, de lhe encontrar uma justa medida, de os transformar, de procurar
escapar a essas artes de governar ou, em todo caso, desloc-lo, a ttulo de
reticncia essencial, mas tambm e por a mesmo como linha dedesenvolvimento das artes de governar, teria tido qualquer coisa nascida na
Europa nesse momento, uma sorte de forma cultural geral, ao mesmo tempo
atitude moral e poltica, maneira de pensar etc. e que eu chamaria
simplesmente arte de no ser governado ou ainda arte de no ser governado
assim e a esse preo. E eu proporia ento, como uma primeira definio da
crtica, esta caracterizao geral: a arte de no de tal forma governado.
Vocs me diro que esta definio ao mesmo tempo bem geral, bem vaga,
bem fluida. Seguramente! Mas eu creio mesmo assim que ela permitiria marcar
alguns pontos de ancoragem precisos do que eu tentei apelidar atitude crtica.
Pontos de ancoragem histricos, claro, e que se poderia fixar assim:
1.Primeiro ponto de ancoragem: numa poca onde o governo dos homens
era essencialmente uma arte espiritual, ou uma prtica essencialmente religiosa
ligada autoridade de uma Igreja, ao magistrio de uma Escritura, no querer
ser governado desta forma, era essencialmente buscar na Escritura uma outra
relao que no aquela ligada ao funcionamento da lio de Deus, no querer
ser governado era uma certa maneira de negar, recusar, limitar (digam como
quiserem) o magistrio eclesistico, era a volta Escritura, era a questo do
que autntico na Escritura, do que foi efetivamente escrito na Escritura, era a
questo de qual a sorte de verdade que diz a Escritura, como ter acesso a esta
verdade da Escritura na Escritura e a despeito talvez do escrito e at o que se
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chega com a questo finalmente mais simples: a Escritura era verdadeira? E em
suma, de Wycliffe a Pierre Bayle, a crtica desenvolveu-se por um lado, que eu
acredito capital e no exclusivo certamente, em relao Escritura. Digamos
que a crtica historicamente bblica.
2.No querer ser governado, est a o segundo ponto de ancoragem, no
querer ser governado assim, no no mais querer aceitar essas leis porque
elas so injustas, porque, sob sua antigidade ou sob o seu brilho mais ou
menos ameaador que lhes d a soberania de hoje, elas escondem uma
ilegitimidade essencial. A crtica ento, desse ponto de vista, em face do
governo e obedincia que ele exige, opor direitos universais e imprescritveis,
aos quais todo governo, qual seja ele, que se trate do monarca, do magistrado,
do educador, do pai de famlia, dever se submeter. Em suma, se vocs querem,
reencontra-se a o problema do direito natural.
O direito natural no certamente uma inveno da Renascena, mas ele
tomou, a partir do sculo XVI, uma funo crtica que ele conservara sempre.
questo "como no ser governado?" responde-se dizendo: quais so os limites
do direito de governar? Digamos que a, a crtica essencialmente jurdica.
3.E enfim, "no querer ser governado", claro, no aceitar como verdade,
e aqui eu passarei muito rpido, o que uma autoridade diz ser verdadeiro, ou ao
menos no aceitar isso seno se se considera, por si mesmo, boas razes para
aceitar. E desta vez, a crtica toma seu ponto de ancoragem no problema da
certeza em face da autoridade.
A Bblia, o direito, a cincia; a escritura, a natureza, a relao a si; o
magistrio, a lei, a autoridade do dogmatismo. V-se como o jogo da
governamentalizao e da crtica, uma em relao a outra, deram lugar a
fenmenos que so, creio eu, capitais na histria da cultura ocidental, que
trata-se do desenvolvimento das cincias filolgicas, trata-se do
desenvolvimento da reflexo, da anlise jurdica, da reflexo metodolgica. Mas,
sobretudo, v-se que o foco da crtica essencialmente o feixe de relaes que
amarra um ao outro, ou um a dois outros, o poder, a verdade e o sujeito. E se a
governamentalizao mesmo esse movimento pelo qual se tratasse na
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realidade mesma de uma prtica social de sujeitar os indivduos por
mecanismos de poder que reclamam de uma verdade, pois bem, eu diria que a
crtica o movimento pelo qual o sujeito se d o direito de interrogar a verdade
sobre seus efeitos de poder e o poder sobre seus discursos de verdade; pois
bem, a crtica ser a arte da inservido voluntria, aquela da indocilidade
refletida. A crtica teria essencialmente por funo a desassujeitamento no jogodo que se poderia chamar, em uma palavra, a poltica da verdade.
Essa definio, malgrado seu carter ao mesmo tempo emprico,
aproximativo, deliciosamente longnquo em relao histria que ela sobrevoa,
eu teria a arrogncia de pensar que ela no muito diferente daquela que Kant
dava: no aquela da crtica, mas justamente de alguma outra coisa. No muito
longe em definitivo da definio que ele dava da Aufklrung. caracterstico,
com efeito, que, em seu texto de 1784 sobre o que a Aufklrung, ele definiu
Aufklrung em relao a um certo estado de menoridade no qual estaria
mantida, e mantida autoritariamente, a humanidade. Em segundo lugar, ele
definiu essa menoridade, ele a caracterizou por uma certa incapacidade na qual
a humanidade estaria retida, incapacidade de se servir de seu prprio
entendimento sem alguma coisa que fosse justamente a direo de um outro, e
ele emprega leiten que tem um sentido religioso historicamente bem definido.
Em terceiro lugar, creio que caracterstico que Kant tenha definido essa
incapacidade por uma certa correlao entre uma autoridade que se exerce e
que mantm a humanidade nesse estado de menoridade, correlao entre este
excesso de autoridade e, de outra parte, algo que ele considera, que ele chama
uma falta de deciso e de coragem. E por conseqncia essa definio daAufklrung no vai ser simplesmente uma espcie de definio histrica e
especulativa; ter nessa definio daAufklrung alguma coisa que se revela um
pouco ridcula sem dvida de chamar de predicao, mas em todo caso um
apelo coragem que ele lana nessa descrio da Aufklrung. No se pode
esquecer que era um artigo de jornal. Teria que fazer um estudo sobre as
relaes da filosofia com o jornalismo a partir do fim do sculo XVIII... A menosque ele tenha sido feito, mais eu no estou certo disso... muito interessante
ver a partir de qual momento os filsofos intervieram nos jornais para dizer algo
que para eles filosoficamente interessante e que, no entanto, se inscreve
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numa certa relao com o pblico com efeitos de apelo. E enfim, caracterstico
que, nesse texto sobre a Aufklrung, Kant d como exemplos de reteno da
menoridade da humanidade, e por conseqncia, como exemplos, pontos sobre
os quais aAufklrung deve erguer esse estado de menoridade e maioridade em,
certo tipo, os homens, precisamente a religio, o direito e o conhecimento. O
que Kant descrevia como a Aufklrung, o que eu tentei at agora descrevercomo a crtica, como essa atitude crtica que se v aparecer como atitude
especfica no Ocidente a partir, creio, do que foi historicamente o grande
processo de governamentalizao da sociedade. Com relao a essa Aufklrung
(cujo emblema, vocs bem o sabem e Kant lembra, "sapere aude", no sem
que uma outra voz, aquela de Frederico II, diz em contraponto "que eles
raciocinem tanto quanto querem contanto que obedeam"), em todo caso, comrelao a esseAufklrung, como Kant vai definir a crtica? Ou em todo caso, pois
eu no tenho a pretenso de retomar o que foi o projeto crtico kantiano no seu
rigor filosfico, eu no me permitiria, diante de um tal auditrio de filsofos,
no sendo eu mesmo filsofo, sendo mal um crtico, com relao a essa
Aufklrung, como se poderia situar a crtica, propriamente dita? Se
efetivamente Kant chama todo esse movimento crtico que precedeu a
Aufklrung, como vai situar, ele, o que entende pela crtica? Eu diria, e aqui
esto coisas completamente infantis, que em relao Aufklrung, a crtica ser
aos olhos de Kant o que ele dir ao saber: voc sabe bem at onde pode saber?
raciocina tanto quanto querias, mas voc sabe bem at onde pode raciocinar
sem perigo? A crtica dir, em suma, que est menos no que ns
empreendemos, com mais ou menos coragem, do que na idia que ns fazemos
do nosso conhecimento e dos seus limites, que a vai a nossa liberdade, e que,
por conseqncia, ao invs de deixar dizer por um outro "obedea", nesse
momento, quando se ter feito do seu prprio conhecimento uma idia justa,
que se poder descobrir o princpio da autonomia e que no se ter mais que
escutar o obedea; ou antes que o obedea estar fundado sobre a autonomia
mesma.
Eu no pretendo mostrar a oposio que haveria em Kant entre a anlise da
Aufklrung e o projeto crtico. Isso seria, eu creio, fcil de mostrar que, para
Kant, essa verdadeira coragem de saber que foi invocada pela Aufklrung, esta
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mesma coragem de saber consiste em reconhecer os limites do conhecimento; e
seria fcil mostrar que para ele a autonomia est longe de ser oposta
obedincia aos soberanos. Mas disso no fica menos que Kant fixou para a
crtica em seu empreendimento de desassujeitamento em relao ao jogo do
poder e da verdade, como tarefa primordial, como prolegmeno a toda
Aufklrung presente e futura, de conhecer o conhecimento.
*
* *
Eu no gostaria de insistir por mais tempo sobre as implicaes desse tipo de
deslocamento entre Aufklrung e crtica que Kant quis marcar por a. Gostaria
simplesmente de insistir sobre esse aspecto histrico do problema que nos
sugerido por isto que se passou no sculo XIX. A histria do sculo XIX deu bem
mais engrenagens continuao do empreendimento crtico tal como Kant o
havia situado de algum modo em recuo em relao a Aufklrung, que a alguma
coisa como a Aufklrung ele mesmo. Dito de outra forma, a histria do sculo
XIX - e, claro, a histria do sculo XX, mais ainda - parecia dever, seno dar
razo a Kant ao menos oferecer uma solidificao, a essa nova atitude crtica, a
essa atitude crtica em retirada por relao a Aufklrung e que Kant abriu a
possibilidade.
Essa tomada histrica que parecia ser oferecida crtica kantiana muito mais
do que a coragem da Aufklrung, era simplesmente esses trs traos
fundamentais: primeiramente, uma cincia positivista, isto fazendo
fundamentalmente confiana nela mesma, quando ainda mesmo ela se achava
cuidadosamente crtica em relao a cada um de seus resultados; em segundo
lugar, o desenvolvimento de um Estado ou de um sistema esttico que se dava,
a si prprio, como razo e como racionalidade profunda da histria e que, por
outro lado, escolhia como instrumentos procedimentos de racionalizao da
economia e da sociedade; da, o terceiro trao, costura desse positivismo
cientfico e do desenvolvimento dos Estados, uma cincia de um Estado ou um
estadismo, se vocs querem. Tece-se entre eles toda uma rede de relaes
cerradas na medida em que a cincia vai desempenhar um papel cada vez mais
determinante no desenvolvimento das foras produtivas, na medida em que, por
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outro lado, os poderes do tipo esttico vo o exercer cada vez mais por entre
conjuntos tcnicos refinados. Da, o fato de que a questo de 1784, o que a
Aufklrung?, ou antes a maneira que Kant, em relao a essa questo e a
resposta que dava a ela, tentou situar seu empreendimento crtico, essa
interrogao sobre as relaes entre Aufklrung e Crtica vai tomar
legitimamente o modo de uma desconfiana ou, em todo caso, de umainterrogao cada vez mais suspeita: de quais excessos de poder, de qual
governamentalizao, tanto mais incontornvel que ela se justifique em razo,
esta razo ela mesma no historicamente responsvel?
Ora, o devir dessa questo, creio eu, no foi absolutamente o mesmo na
Alemanha e na Frana, e isso pelas razes histricas que seria preciso analisar
j que so complexas.
Poder-se-ia dizer grosso modo: que, menos talvez por causa do
desenvolvimento recente de um belo Estado novinho e racional na Alemanha do
que por causa do j envelhecido vnculo das Universidades Wissenschafte s
estruturas administrativas e estatais, essa suspeita, de que h algo na
racionalizao e talvez mesmo na razo mesma que responsvel pelo excesso
de poder, pois bem, me parece que essa suspeita se desenvolveu sobretudo na
Alemanha e, digamos para ser ainda mais breve, que ela se desenvolveu
sobretudo no que se poderia chamar uma esquerda alem. Em todo caso, da
esquerda hegeliana Escola de Frankfurt, houve toda uma crtica do
positivismo, do objetivismo, da racionalizao, da techn e da tecnicisao, toda
uma crtica das relaes entre o projeto fundamental da cincia e da tcnica,
que tem por objetivo fazer aparecer os elos entre uma presuno ingnua da
cincia de um lado, e as formas de dominao prprias forma da sociedade
contempornea de outro. Para tomar como exemplo aquele que sem dvida
nenhuma que foi o mais longnquo do que se poderia chamar de uma crtica de
esquerda, no se pode esquecer que Husserl em 1936 referia a crise
contempornea da humanidade europia a algo que abrigava a questo das
relaes do conhecimento tcnica, da pistm techn.
Na Frana, as condies para o exerccio da filosofia e da reflexo poltica
foram muito diferentes, e, por causa disso, a crtica da razo presunosa e dos
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seus efeitos especficos de poder no parece ter sido conduzida da mesma
forma. E isso estaria, penso, do lado de um certo pensamento de direita, ao
longo do sculo XIX e do sculo XX, que reencontrava essa mesma acusao
histrica da razo ou da racionalizao sob o nome dos efeitos de poder que ele
leva com ele. Em todo caso, o bloco constitudo pelo Iluminismo e a Revoluo
impediu sem dvida, de uma maneira geral, que se recoloque realmente eprofundamente em questo essa relao da racionalizao e do poder; talvez
tambm o fato de que a Reforma, isto , o que eu acredito ter sido, nas suas
razes mais profundas, o primeiro movimento crtico como arte de no ser
governado, o fato de que a Reforma no havia tido na Frana a amplitude e a
conquista que ela conheceu na Alemanha, fez, sem dvida, que na Frana essa
noo de Aufklrung com todos os problemas que ela colocava no teve umasignificao to ampla, e alis ela nunca foi uma referncia histrica to
longamente apresentada como na Alemanha. Digamos que na Frana,
contenta-se com uma certa valorizao poltica dos filsofos do sculo XVIII, ao
mesmo tempo em que se desqualificava o pensamento do Iluminismo como um
episdio menor na histria da filosofia. Na Alemanha, ao contrrio, o que era
entendido por Aufklrung era considerado bem ou mal, pouco importa, mas
certamente como um episdio importante, uma espcie de manifestao
espetacular do destino profundo da razo ocidental. Acharia naAufklrung e em
todo esse perodo, que em suma do sculo XVI ao XVIII serve de referncia a
esta noo de Aufklrung, tentava-se decifrar, reconhecer a linha de declive, a
mais marcada da razo ocidental, enquanto era a poltica a qual ela estava
ligada, que fazia o objeto de um exame suspeito. Tal , se vocs querem, grosso
modo, o quiasma que caracteriza a maneira que na Frana e na Alemanha o
problema da Aufklrung foi posto no curso do sculo XIX e toda a primeira
metade do sculo XX.
Ora, creio que a situao na Frana mudou no curso desses ltimos anos; e
que de fato, esse problema da Aufklrung, (tal como tinha sido to importante
para o pensamento alemo desde Mendelssohn, Kant, passando por Hegel,Nietzsche, a Escola de Frankfurt etc...), me parece que na Frana chegou-se a
uma poca onde precisamente esse problema daAufklrung pode ser retomado
numa proximidade, suficientemente significativa, com os trabalhos da Escola de
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Frankfurt. Digamos, sempre para sermos breves, que - e isso no espantoso -
da fenomenologia e dos problemas postos por ela que ns voltamos questo
do que a Aufklrung. Ela nos fez voltar, com efeito, a partir da questo do
sentido e do que pode constituir o sentido. Como fazer com que haja sentido a
partir do no sentido? Como o sentido vem? Questo na qual se v bem que
complementar a esta outra: como fez-se para que o grande movimento daracionalizao nos tenha conduzido a tanto barulhos, a tanto furor, a tanto
silncio e mecanismo triste? Apesar de tudo, no se pode esquecer que A
Nusea est h poucos meses da contempornea Krisis. E pela anlise,
ps-guerra, disso, a saber, que o sentido no se constitui seno por sistemas de
constrangimentos caractersticos da maquinaria significante, , me parece, pela
anlise desse fato que no h sentido seno pelos efeitos de coero prprios sestruturas, que, por um estranho resumo, se reencontrou o problema entre
ratio epoder. Penso igualmente (e a seria um estudo a fazer, sem dvida) que
as anlises da histria das cincias, toda essa problematizao da histria das
cincias (que, ela tambm, se enraza sem dvida na fenomenologia, que na
Frana seguiu por Cavaills, por Bachelard, por Georges Canguilhem, toda uma
outra histria), me parece que o problema histrico da historicidade das
cincias no est sem ter algumas relaes e analogias, sem fazer at um certo
ponto eco, a esse problema da constituio do sentido: como nasce, como se
forma essa racionalidade, a partir de que coisa que absolutamente outro? Eis a
recproca e o inverso do problema da Aufklrung: o que faz com que a
racionalizao conduza ao furor do poder?
Ora, parece que, sejam essas buscas sobre a constituio do sentido com adescoberta de que o sentido no se constitui seno pelas estruturas de coero
do significante, sejam as anlises feitas sobre a histria da racionalidade
cientfica com os efeitos de constrangimento ligados a sua institucionalizao e
constituio de modelos, tudo isso, todas essas pesquisas histricas no
fizeram, me parece, seno confirmar como por um jogo rigoroso e como atravs
de uma espcie de assassinato universitrio o que foi, apesar de tudo, omovimento de fundo da nossa histria desde um sculo. Pois, fora de
celebrar que nossa organizao social ou econmica carecia de racionalidade,
ns nos encontramos frente eu no sei se demais ou insuficiente razo, em todo
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caso seguramente frente a poder demais; fora de ouvir cantar as promessas
da revoluo, eu no se a onde ela se produziu ela boa ou m, mas ns nos
encontramos frente inrcia de um poder que indefinidamente se mantm; e
fora de ouvir cantar a oposio entre as ideologias da violncia e a verdadeira
teoria cientfica da sociedade, do proletariado e da histria, ns nos
encontramos com duas formas de poder que se assemelhavam como doisirmos: fascismo e stalinismo. Retorno por conseqncia da questo: o que a
Aufklrung?E se reativa assim os problemas que tinham marcado as anlises de
Max Weber: o que convm dessa racionalizao que ela caracteriza no somente
o pensamento e a cincia ocidentais desde o sculo XVI, mas tambm as
relaes sociais, as organizaes estatais, as prticas econmicas e talvez at
no comportamento dos indivduos? O que fica dessa racionalizao em seusefeitos de constrangimento e talvez de obnubilao, de implantao macia e
crescente e nunca radicalmente contestada de um vasto sistema cientfico e
tcnico?
Esse problema, que ns somos obrigados na Frana de retomar sobre nossos
ombros, esse problema do que a Aufklrung?pode-se abordar por diferentes
caminhos. E o caminho pelo qual eu gostaria de abordar, eu no o retomo
absolutamente - e eu gostaria que vocs acreditassem em mim em um esprito
nem de polmica nem de crtica. Duas razes conseqentes fazem com que eu
no busque outra coisa que no marcar as diferenas e de alguma forma ver at
onde se pode multiplicar, dividir, remarcar uns em relao aos outros, deslocar,
se vocs querem, as formas de anlises desse problema da Aufklrung, que
talvez apesar de tudo o problema da filosofia moderna.
Eu gostaria de, logo em seguida, abordando esse problema que nos torna
fraternos em relao Escola de Frankfurt, notar que de todas as maneiras,
fazer da Aufklrung a questo central, isso quer dizer com toda a certeza, um
certo nmero de coisas. Isso quer dizer de incio que engaja-se numa certa
prtica que se chamaria histrico-filosfica, que no tem nada a ver com a
filosofia da histria e a histria da filosofia, uma certa prtica histrico-filosfica
e por a quero dizer que o domnio da experincia ao qual se refere esse
trabalho filosfico no exclui dele nenhum outro absolutamente. No a
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experincia interior, no so as estruturas fundamentais do conhecimento
cientfico, mas no mais que um conjunto de contedos histricos elaborados
por a, preparados pelos historiadores e acolhidos todos fatos como fatos.
Trata-se, de fato, dessa prtica histrico-filosfica de fazer sua prpria histria,
de fabricar como por fico a histria que seria atravessada pela questo das
relaes entre as estruturas de racionalidade que articulam o discursoverdadeiro e os mecanismos de assujeitamento que a eles so ligados, questo,
v-se bem, que desloca os objetos histricos habituais e familiares aos
historiadores em direo ao problema do sujeito e da verdade que os
historiadores no se ocupam. V-se igualmente que esta questo cerca o
trabalho filosfico, o pensamento filosfico, a anlise filosfica nos contedos
empricos traados precisamente por ela. Da, se vocs querem, os historiadoresfrente ao trabalho histrico ou filosfico vo dizer: "sim, claro, talvez", em todo
o caso no nunca absolutamente aquilo, o que o efeito de rudo devido a
esse deslocamento em direo ao sujeito e verdade que eu falava. E que os
filsofos, mesmo se eles no tomam todos os ares de galinhas d'angola
ofendidas, pensam geralmente: " a filosofia, malgrado tudo, bem outra coisa",
isso sendo devido ao efeito de queda, devido a essa volta a uma empiricidade
que no tem mesmo de ser para ela garantia de uma experincia interior.
Concedemos a essas vozes do lado toda a importncia que elas tm, e esta
importncia grande. Elas indicam ao menos negativamente que se est no
bom caminho, isto , que atravs dos contedos histricos que se elabora e aos
quais se est ligado j que so verdadeiros ou que valem como verdadeiros,
coloca-se a questo: o que ento eu sou, eu que perteno a esta humanidade,talvez margem, nesse momento, nesse instante de humanidade que est
sujeitado ao poder da verdade em geral e das verdades em particular?
Desubjetivar a questo filosfica pelo recurso ao contedo histrico, libertar os
contedos histricos pela interrogao sobre os efeitos de poder cuja verdade -
essa que eles pressupem e marcam - os afeta, , se vocs querem, a primeira
caracterstica dessa prtica histrico-filosfica. De outra parte, essa prticahistrico-filosfica se acha evidentemente numa relao privilegiada de uma
certa poca empiricamente determinvel: mesmo se ela relativamente e
necessariamente fluida, essa poca , seguramente, designada como momento
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8/4/2019 FOUCAULT, Michel - O que a crtica Crtica e Aufklrung
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de formao da humanidade moderna,Aufklrung no sentido amplo do termo ao
qual se referia Kant, Weber etc., perodo sem datao fixa, com mltiplas
entradas j que se pode defini-la tanto quanto pela formao do capitalismo, a
constituio do mundo burgus, a localizao dos sistemas estatais, a fundao
da cincia moderna com todos os seus correlativos tcnicos, a organizao de
cara a cara entre a arte de ser governado e aquela de no ser governado de talmodo. Privilgio de fato, por conseqncia, para o trabalho histrico-filosfico
que esse perodo, j que a que aparecem de alguma forma no mago e na
superfcie das transformaes visveis, essas relaes entre poder, verdade e
sujeito que se trata de analisar. Mas, privilgio tambm no sentido de que
trata-se de formar a partir da uma matriz para o percurso de toda uma srie de
outros domnios possveis. Digamos, se vocs querem, que no porque seprivilegia o sculo XVIII, porque interessa-se por ele, que se encontra o
problema daAufklrung; eu diria que porque v-se fundamentalmente colocar
a questo o que a Aufklrung? que se reencontra o esquema histrico da
nossa modernidade. No se tratar de dizer que os gregos do sculo V so um
pouco como os filsofos do sculo XVIII ou embora o sculo XII j tivesse uma
espcie de Renascena, mas sim de tentar ver sob quais condies, ao preo de
quais modificaes ou de quais generalizaes pode-se aplicar a algum
momento da histria essa questo da Aufklrung, a saber as relaes dos
poderes, da verdade e do sujeito.
Tal o quadro geral dessa investigao que eu chamaria histrico-filosfica,
eis como se pode agora a conduzir.
*
* *
Eu dizia agora a pouco que queria em todo caso traar muito vagamente
outras vias possveis que no aquelas que me parecem ter sido at o momento
voluntariamente exploradas. O que no de forma alguma os acusar nem os
conduzir a nada nem de dar-lhes qualquer resultado vlido. Eu queria
simplesmente dizer isso e sugerir isso: me parece que essa questo da
Aufklrung desde Kant, por causa de Kant, e verossimelmente por causa desse
deslocamento entre Aufklrung e crtica que ele introduziu, foi essencialmente
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posta em termos de conhecimento, isto , partindo do que foi o destino histrico
do conhecimento no momento da constituio da cincia moderna; isto , ainda,
buscando o que nesse destino j marcava os efeitos de poder indefinidos aos
quais ele tinha sido necessariamente ligado pelo objetivismo, o positivismo, o
tecnicismo etc. , relacionando esse conhecimento s condies de constituio e
de legitimidade de todo conhecimento possvel, e enfim buscando como nahistria se tinha operado a passagem legitimada para fora (iluso, erro,
esquecimento, encobrimento etc.). Em uma palavra, o procedimento de
anlise que me parece no fundo ter sido engajado pelo deslocamento da crtica
em relao a Aufklrung operado por Kant. Parece-me que a partir da, tem-se
um procedimento de anlise que no fundo aquele foi seguido mais
freqentemente, procedimento de anlise que se poderia chamar umainvestigao legtima dos moldes histricos do conhecer. em todo caso assim
que um certo nmero de filsofos do sculo XVIII, assim que Dilthey,
Habermas etc., entenderam. Mais simples ainda: que falsa idia o conhecimento
fez dele mesmo e por qual uso excessivo ele se viu exposto, a qual dominao
por conseqncia ele se encontrou ligado?
Pois bem, antes desse procedimento que toma a forma de uma investigao
legtima dos moldes histricos do conhecer, se poderia talvez examinar um
procedimento diferente. Este, poderia tomar por entrada na questo da
Aufklrung, no o problema do conhecimento, mas aquele do poder; ele
avanaria no como uma investigao legtima, mas como algo que eu chamaria
uma experincia de acontecimentalizao. Perdoem-me pelo horror da palavra!
E, j em seguida, o que isso quer dizer? O que eu entenderia por procedimentode acontecimentalizao, devessem os historiadores gritar de horror, seria isso:
de incio, tomar conjuntos de elementos onde se pode perceber em primeira
aproximao, portanto, de modo absolutamente emprico e provisrio, conexes
entre mecanismos de coero e contedos de conhecimento. Mecanismos de
coero diversos, talvez mesmo conjuntos legislativos, regulamentos,
dispositivos materiais, fenmenos de autoridade etc.; contedos deconhecimento que se tomar igualmente em sua diversidade e em sua
heterogeneidade, e que se reter em funo dos efeitos de poder de que so
portadores enquanto vlidos, como fazendo parte de um sistema de
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8/4/2019 FOUCAULT, Michel - O que a crtica Crtica e Aufklrung
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conhecimento. O que se busca ento no saber o que verdadeiro ou falso,
fundamentado ou no fundamentado, real ou ilusrio, cientfico ou ideolgico,
legtimo ou abusivo. Procura-se saber quais so os elos, quais so as conexes
que podem ser observadas entre mecanismos de coero e elementos de
conhecimento, quais jogos de emisso e de suporte se desenvolvem uns nos
outros, o que faz com que tal elemento de conhecimento possa tomar efeitos depoder afetados num tal sistema a um elemento verdadeiro ou provvel ou
incerto ou falso, e o que faz com que tal procedimento de coero adquira a
forma e as justificaes prprias a um elemento racional, calculado,
tecnicamente eficaz etc.
Ento, nesse primeiro nvel, no operar a diviso da legitimidade, no fixar o
ponto do erro e da iluso.
E porque, nesse nvel, me parece que se pode utilizar duas palavras que no
tm por funo designar entidades, potncias ou algo como transcendentais,
mas somente operar em relao aos domnios aos quais se referem uma
reduo sistemtica de valor, digamos uma neutralizao quanto aos efeitos de
legitimidade e um Iluminismo disso que os torna a um certo momento
aceitveis e que faz com que efetivamente eles fossem aceitos. Utilizao,
portanto, da palavra saberque se refere a todos os procedimentos e a todos os
efeitos de conhecimento que so aceitveis num momento dado e em um
domnio preciso, e segundamente, do termopoderque no faz outra coisa seno
recobrir toda uma srie de mecanismos particulares, definveis e definidos, que
parecem susceptveis de induzir comportamento ou discursos. V-se j que
esses dois termos no tm outro papel que o metodolgico: no o caso de
localizar atravs deles princpios gerais de realidade, mas de fixar de alguma
forma a frente de anlise, o tipo de elemento que deve ser para ela pertinente.
Trata-se, assim, de evitar jogar desde o incio com a perspectiva da legitimao
como fazem os termos conhecimento ou dominao. Trata-se igualmente, em
todo momento da anlise, de poder lhes dar um contedo determinado e
preciso, tal elemento de saber, tal mecanismo de poder ; nunca se deve
considerar que exista um saber ou um poder, pior ainda o saber ou o poder que
fossem neles mesmos operantes. Saber, poder, so apenas uma grade de
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anlise. V-se tambm que esta grade no composta de duas categorias de
elementos estranhos um ao outro, o que seria do saber de um lado e o que seria
do poder de outro - e o que eu dizia h pouco os tornaria exteriores um ao outro
-, pois nada pode figurar como elemento de saber se, de um lado, no est
conforme a um conjunto de regras e de coaes caractersticas, por exemplo, de
tal tipo de discurso cientfico numa poca dada, e se, de outro lado, no dotasseefeitos de coero ou simplesmente de incitao prprios ao que validado
como cientfico ou simplesmente racional ou comumente admitido, etc.
Inversamente nada pode funcionar como mecanismo de poder se no se
manifesta segundo procedimentos, instrumentos, meios, objetivos que possam
ser validados em sistemas mais ou menos coerentes de saber. No se trata,
ento, de descrever o que saber e o que poder e como um reprimiria o outroou como o outro abusaria daquele, mas trata-se antes de descrever um nexo de
saber-poder que permita entender o que constitui a aceitabilidade de um
sistema, quer seja o sistema da doena mental, da penalidade, da delinqncia,
da sexualidade etc.
Em resumo, me parece que de nossa observao emprica de um conjunto
sua aceitabilidade histrica, na poca mesma onde efetivamente ele
observado, o caminho passa por uma anlise do nexo saber-poder que o
sustenta, o retoma a partir do fato que ele aceito, em direo do que o torna
aceitvel no, claro, em geral, mas a somente onde ele aceito: isso que se
poderia caracterizar como o retomar em sua positividade. Tem-se a, ento, um
tipo de procedimento, que, fora o cuidado de legitimao e por conseqncia
descartando o ponto de vista fundamental da lei, percorre o ciclo da positividadeindo de fato da aceitao ao sistema de aceitabilidade analisado a partir do jogo
saber-poder. Digamos que est a o nvel, aproximadamente, da arqueologia.
Depois, v-se que, a partir desse tipo de anlise, ameaam um certo nmero
de perigos que no podem no aparecer como as conseqncias negativas e
onerosas de uma tal anlise.
Essas positividades so conjuntos que no vo de si, no sentido que, quais
sejam o hbito ou o desgaste que puderam nos tornar familiares, qual seja a
fora da cegueira dos mecanismos de poder que elas fazem jogar ou quais
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sejam as justificaes que elas elaboraram, no tornaram-se aceitveis por
algum direito originrio; e o que faz-se preciso ressaltar para apoderar do que
pde os tornar aceitveis, que justamente isso no vinha de si, no estava
inscrito em nenhum a priori, no estava contido em nenhuma anterioridade.
Liberar as condies de aceitabilidade de um sistema e seguir as linhas de
ruptura que marcam sua emergncia, esto a duas operaes correlativas. Issono ia, em absoluto, de si, que a loucura e a doena mental se superpusessem
no sistema institucional e cientfico da psiquiatria; no era mais dado que os
procedimentos punitivos, o aprisionamento e a disciplina penitenciria, viessem
se articular num sistema penal; no era mais dado que o desejo, a
concupiscncia, o comportamento sexual dos indivduos devessem efetivamente
se articular uns sobre os outros em um sistema de saber e de normalidadechamado sexualidade. O reconhecimento da aceitabilidade de um sistema
indissocivel do reconhecimento do que o tornava difcil aceitar: sua
arbitrariedade em termos de conhecimento, sua violncia em termos de poder,
logo sua energia. Ento, necessidade de tomar sob sua responsabilidade essa
estrutura, para melhor seguir os artifcios.
Segunda conseqncia, aqui tambm onerosa e negativa, est em que esses
conjuntos no so analisados como universais aos quais a histria traria, com
suas circunstncias particulares um certo nmero de modificaes. claro,
muitos dos elementos aceitos, muitas das condies de aceitabilidade podem ter
atrs de si uma longa carreira; mas o que se trata de retomar na anlise dessas
positividades so, de alguma forma, singularidades puras, nem incarnao de
uma essncia, nem individualizao de uma espcie: singularidade da loucurano mundo ocidental moderno, singularidade absoluta da sexualidade,
singularidade absoluta do sistema jurdico-moral de nossas punies.
Nenhum recurso fundador, nenhuma fuga em uma forma pura, est a sem
dvida um dos pontos mais importantes e mais contestados desse passo
histrico-filosfico: se ela no quer oscilar nem numa filosofia da histria, nem
uma anlise histrica, ela deve se manter no campo de imanncia das
singularidades puras. Ento qual? Ruptura, descontinuidade, singularidade,
descrio pura, quadro imvel, sem explicao, sem passagem, vocs conhecem
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tudo isso. Se dir que a anlise dessas positividades no levantam esses
procedimentos ditos explicativos aos quais se atribui um valor causal sob trs
condies:
no se reconhece valor causal seno sob explicaes que visam uma ltima
instncia valorizada como profunda e ela somente, economia para uns,
demografia para outros;
1.
no se reconhece como tendo valor causal seno o que obedece a uma
piramidalizao pontuda em direo causa ou ao foco causal, a origem
unitria;
2.
e enfim, no se reconhece valor causal seno ao que estabelece uma certa
inevitabilidade ou ao menos o que aproxima da necessidade. A anlise das
positividades, na medida em que se trata de singularidades puras
relacionadas no a uma espcie ou a uma essncia, mas a simples
condies de aceitabilidade, pois bem, essa anlise supe o desdobramento
de uma rede causal ao mesmo tempo complexa e amarrada, mas sem
dvida de um outro tipo, uma rede causal que no obedeceria justamente
exigncia de saturao por um princpio profundo unitrio 'piramidalisante'
e carente. Trata-se de estabelecer uma rede que d conta dessa
singularidade como um efeito: donde a necessidade da multiplicidade das
relaes, da diferenciao entre as diferentes formas de relao, da
diferenciao entre as diferentes formas de necessidades de
encadeamentos, de decifrao de interaes e de aes circulares e o
prestar contasdo cruzamento de processos heterogneos. E nada, ento,mais estranho a uma tal anlise que a recusa da causalidade. Mas o que
importante que no se trata em tais anlises de reconduzir a uma causa
um conjunto de fenmenos derivados, mas de colocar em inteligibilidade
uma positividade singular no que ela tem justamente de singular.
3.
Digamos, grosso modo, por oposio a uma gnese que se orienta em direo
unidade de uma causa principal compacta de uma descendncia mltipla,
haveria a uma genealogia, isto , algo que tenta restituir as condies de
apario de uma singularidade a partir de mltiplos elementos determinantes, e
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que aparece no como o produto, mas como o efeito. Posta em inteligibilidade,
ento, mas que preciso atentar que ela no funciona segundo um princpio de
fechamento. E aqui, no se trata de um princpio de fechamento para um certo
nmero de razes.
A primeira que as relaes que permitem dar conta desse efeito singular
so, se no na sua totalidade ao menos para uma parte considervel, relaes
de interaes entre indivduos ou grupos, isto , que elas implicam sujeitos,
tipos de comportamentos, decises, escolhas: no na natureza das coisas que
se poderia encontrar o sustento, o suporte dessa rede de relaes inteligveis,
a lgica prpria de um jogo de interaes com suas margens sempre variveis
de no certeza.
Sem mais fechamento, porque essas relaes que se tenta estabelecer para
dar conta de uma singularidade como efeito, essa rede de relaes no deve
constituir um plano nico. So relaes que esto em perptuo desligamento
uns em relao aos outros. A lgica das interaes, a um nvel dado, se d por
entre indivduos podendo ao mesmo tempo guardar suas regras e sua
especificidade, seus efeitos singulares, constituindo com outros elementos das
interaes que se do a um outro nvel, de forma que, de uma certa maneira,
nenhuma dessas interaes aparece primria ou absolutamente totalizante.
Nenhuma pode ser recolocada num jogo que a invade; e inversamente,
nenhuma, to local como ela, sem efeito ou sem risco de efeito sobre aquela
da qual faz parte e que a desenvolve. Assim, se vocs querem e
esquematicamente, mobilidade perptua, fragilidade essencial ou antes
emaranhadoentre o que reconduz o mesmo processo e o que o transforma. Em
resumo, trataria aqui de liberar toda uma forma de anlises que se poderia dizer
estratgicas.
Falando de arqueologia, de estratgia e de genealogia, eu no penso que se
trata de pontuar aqui trs nveis sucessivos que seriam desenvolvidos uns a
partir dos outros, mas antes de caracterizar trs dimenses necessariamentesimultneas da mesma anlise, trs dimenses que deveriam permitir em sua
simultaneidade mesma retomar o que h de positivo, isto , quais so as
condies que tornam aceitvel uma singularidade cuja inteligibilidade se
-
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estabelece pelo reconhecimento das interaes e das estratgias as quase ela
se integra. uma tal busca levando em conta ... [faltam algumas frases
perdidas quando do retorno da fita de gravao] ... se produz como efeito, e
enfim acontecimentalizao no que tem a ver a alguma coisa cuja estabilidade,
cujo enraizamento, cujo fundamento no nunca tal que no se possa de uma
maneira ou de outra, se no pensar em seu desaparecimento, ao menosidentificar pelo que e a partir de que seu desaparecimento possvel.
Eu dizia a pouco, antes de colocar o problema em termos de conhecimento e
de legitimao, que se tratava de abordar a questo pelo vis do poder e da
acontecimentalizao. Mas, vejam vocs, no se trata de fazer funcionar o poder
entendido como dominao, domnio, a ttulo de dado fundamental, de princpio
nico, de explicao ou de lei incontornvel; ao contrrio, trata-se de considerar
sempre como relao num campo de interaes , trata-se de pensar numa
relao indissocivel com formas de saber, e trata-se de pensar sempre de tal
maneira que se o veja associado a um domnio de possibilidade e por
conseqncia de reversibilidade, de inverso possvel.
Vejam vocs que assim a questo no mais: por qual erro, iluso,
esquecimento, por quais falhas de legitimidade o conhecimento vem induzir
efeitos de dominao que manifeste no mundo moderno a influncia [palavra
inaudvel] ? A questo seria antes essa: como a indissociabilidade do saber e do
poder no jogo das interaes e das estratgias mltiplas pode induzir ao mesmo
tempo singularidades que se fixam a partir de suas condies de aceitabilidade
e um campo de possveis, de aberturas, de indecises, de retornos e de
deslocamentos eventuais que os tornam frgeis, que os tornam impermanentes,
que fazem desses efeitos dos acontecimentos nada mais, nada menos que
acontecimentos? De qual forma os efeitos de coero prprios a essas
positividades podem ser, no dissipados por um retorno ao destino legtimo do
conhecimento e por uma reflexo sobre o transcendental ou o quase
transcendental que o fixa, mas invertidos ou desfeitos no interior de um campo
estratgico concreto que os induziu, e a partir da deciso precisamente de no
ser governado?
Em suma, o movimento que empurrou a atitude crtica para a questo da
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crtica ou ainda o movimento que fez revigorar o empreendimento da
Aufklrung no projeto crtico que era de fazer com que o conhecimento pudesse
se fazer de si prprio uma justa idia, esse movimento de gangorra, esse
deslocamento, a maneira de desviar a questo daAufklrung para a crtica, no
seria preciso tentar fazer agora o caminho inverso? No se poderia tentar
percorrer esta via, mas num outro sentido? E se preciso colocar a questo doconhecimento na sua relao com a dominao, seria de incio e antes de tudo a
partir de um certa vontade decisria de no ser governado, esta vontade
decisria, atitude ao mesmo tempo individual e coletiva de sair, como dizia
Kant, de sua menoridade. Questo de atitude. Vejam vocs porque eu nunca
pude dar, ousaria dar um ttulo minha conferncia que tivesse sido: "o que a
Aufklrung?".
Henri Gouhier - eu agradeo muito vivamente Michel Foucault por nos ter
trazido um conjunto to coordenado de reflexes que eu chamaria filosficas,
embora ele tinha dito "no sendo eu mesmo filsofo". Eu devo dizer que aps
ter dito "no sendo eu mesmo filsofo", ele completaria "apenas crtico", isto ,
mesmo assim um pouco crtico. E aps sua exposio, eu me pergunto se ser um
pouco crtico no ser muito filsofo.
Nol Mouloud - Eu gostaria de fazer talvez duas ou trs consideraes. A
primeira a seguinte: M. Foucault parece nos ter colocado diante de uma
atitude geral do pensamento, a recusa do poder ou a recusa da regra coercitiva
que engendra uma atitude geral, a atitude crtica. Ele passou da para umaproblemtica que ele apresentou como um prolongamento dessa atitude, uma
atualizao dessa atitude: trata-se dos problemas que so postos atualmente
concernentes s relaes de saber, da tcnica e do poder. Eu veria de uma certa
maneira atitudes crticas localizadas, voltando sobre certos ncleos de
problemas, isto , em grande medida, tendo fontes ou se se quer limites
histricos. preciso, j, que ns tenhamos uma prtica, um mtodo que alcancecertos limites, que coloque problemas, que chegue a impasses, para que uma
atitude crtica se desenhe. E assim esto, por exemplo, os sucessos
metodolgicos do positivismo que, com as dificuldades que ele levantou,
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engendraram frente a ele reaes crticas que ns conhecemos, que apareceram
desde meio sculo, isto , a reflexo logicista, a reflexo criticista, eu penso na
escola popperiana ou na reflexo wittgensteiniana sobre os limites de uma
linguagem cientfica normalizada. Freqentemente atravs desses momentos
crticos v-se aparecer uma resoluo nova, a busca de uma prtica renovada,
de um mtodo que tem ele mesmo um aspecto regional, um aspecto de umabusca histrica.
Michel Foucault - Voc tem absoluta razo. mesmo nessa perspectiva que a
atitude crtica foi engajada e que ela desenvolveu suas conseqncias de uma
maneira privilegiada no sculo XIX. Eu diria que o canal kantiano, isto , que o
momento forte, o momento essencial da atitude crtica deve mesmo ser o
problema da interrogao do conhecimento sobre seus prprios limites ou os
impasses, se voc quer, que ele encontra em seu exerccio primeiro e concreto.
O que me surpreende, so duas coisas. De um lado, que o uso kantiano da
atitude crtica no impede - e para dizer a verdade, em Kant o problema mais
explicitamente colocado - que a crtica ponha tambm (o problema saber se
isso fundamental ou no, se se pode discutir) essa questo: o que o uso da
razo, qual uso da razo pode trazer efeitos quanto aos abusos do exerccio de
poder, e por conseqncia ao destino concreto da liberdade? Eu creio que
quanto a esse problema Kant est longe de ignorar e houve, na Alemanha
sobretudo, todo um movimento de reflexo em torno desse tema, se voc quer,
generalizador, deslocando o problema crtico estrito que voc citou em direo a
outras regies. Voc cita Popper, mas apesar de tudo para Popper tambm o
excesso de poder foi mesmo um problema fundamental.
De outro lado, o que eu gostaria de observar - e eu peo licena para o
carter absolutamente de sobrevo, se posso dizer - que me parece que a
histria da atitude crtica, no que ela tem de especfico no Ocidente - e no
Ocidente moderno desde os sculos XV e XVI, - preciso buscar a origem nas
lutas religiosas e nas atitudes espirituais na segunda metade da Idade Mdia.Justamente no momento em que se pe o problema: como ser governado, vai-se
aceitar ser governado desse modo? ento que as coisas esto em seu nvel
mais concreto, o mais historicamente determinado: todas as lutar em torno da
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pastoral na segunda metade da Idade Mdia prepararam a Reforma e, creio eu,
foram a espcie de limiar histrico sobre o qual se desenvolveu essa atitude
crtica.
Henri Birault - Eu no gostaria de desempenhar o papel da galinha d'angola
assustada! Estou absolutamente de acordo com a forma que a questo da
Aufklrung se encontra ao mesmo tempo explicitamente retomada por Kant
para sofrer uma restrio terica decisiva em funo de imperativos de ordem
moral, religiosas, poltica etc., que so caractersticas do pensamento de
kantiano. Eu acredito que sobre isso, entre ns, haja acordo total.
No que concerne agora parte mais diretamente positiva da exposio,
quando se trata de estudar no nvel concreto, de alguma forma, no nvel doacontecimento, os fogos cruzados do sabre e do poder, eu me pergunto se no
h lugar quando mesmo para uma questo subjacente e, digamos, mais
essencialmente e mais tradicionalmente filosfica, que se situaria com recuo em
relao a esse estudo precioso e minucioso dos jogos do saber e do poder em
diferentes domnios. Essa questo metafsica e histrica poderia ser formulada
da seguinte maneira: no se pode dizer que a um certo momento da nossa
histria e numa certa regio do mundo o saber ele mesmo, o saber como tal,
tomou a forma de um poder ou de uma potncia, enquanto que o poder, a seu
lado, sempre definido como uma habilidade, uma certa maneira de saber tomar
ou de saber tomar-se manifestava enfim a essncia propriamente dinmica do
notico? Nada de espantoso, se devesse ser assim, que Michel Foucault possa
encontrar e desvendar as redes ou relaes mltiplas que se estabelecem entre
o saber e o poder j que ao menos a partir de uma certa poca, o saber no
fundo um poder, e o poder no fundo um saber, o saber e o poder de um mesmo
valor, de uma mesma vontade eu sou mesmo obrigado a chamar vontade de
potncia.
Michel Foucault - Sua questo levaria generalidade desse tipo de relao?
Henri Birault - No exatamente sobre sua generalidade seno sobre sua
radicalidade ou seu fundamento oculto do lado de c da dualidade dos dois
termos saber-poder. No possvel encontrar uma espcie de essncia comum
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do saber e do poder, o saber se definindo ele mesmo como saber do poder e o
poder, a se lado, se definindo como saber do poder (deixa explorar atentamente
as mltiplas significaes desse duplo genitivo)?
Michel Foucault - Absolutamente. A, justamente, eu fui insuficientemente
claro, na medida em que o que gostaria de fazer, o que eu sugeria, que abaixo
de ou do lado de c de uma espcie de descrio - grosso modo, h os
intelectuais e os homens de poder, h os homens de cincia e as exigncias da
indstria etc. -, de fato tem-se toda uma rede tranada. No somente de
elementos de saber e de poder; mas, para que o saber funcione como saber, isso
no pode ser seno na medida em que ele exerce um poder. No interior dos
outros discursos de saber em relao aos discursos de saber possveis, cada
enunciado considerado como verdadeiro exerce um certo poder e cria ao mesmo
tempo uma possibilidade; inversamente todo exerccio de poder, mesmo se se
trata de uma mortificao, implica ao menos uma habilidade, e, apesar de tudo,
esmagar selvagemente um indivduo, ainda uma certa maneira de tom-lo.
Assim, se voc quer, eu estou absolutamente de acordo e o que tentei fazer
aparecer: sob as polaridades que, para ns, aparecem bem distintas daquelas do
poder, tem-se uma espcie de reflexo...
Nol Mouloud - Eu volto a nossa referncia comum, ao Sr. Birault e a mim
mesmo: Popper. Um dos traos de Popper mostrar que na constituio de
esferas de poder, qualquer que seja a natureza dele, isto , dogmas, normas
imperativas, paradigmas, no o saber ele mesmo que est engajado, que
responsvel, mas uma racionalidade desviante que no mais um saber
verdadeiramente. O saber - ou a racionalidade enquanto formadora ela mesma
despida de paradigmas, despida de receitas. Sua iniciativa prpria de
recolocar em questo suas prprias certezas, sua prpria autoridade, e de
"polemizar contra ela mesma". precisamente por essa razo que ela
racionalidade e a metodologia tal como Popper a concebe de desempatar, de
separar esses dois comportamentos, de tornar a confuso ou a mistura
impossvel entre o uso das receitas, a gesto dos procedimentos e a inveno
das razes. E eu me perguntaria, embora isso seja bem mais difcil, se no
domnio humano, social, histrico, as cincias sociais no seu conjunto no
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desempenham igualmente e antes de tudo o papel da abertura: h aqui uma
situao muito difcil porque elas so de fato solidrias da tcnica. Entre uma
cincia e os poderes que a utilizam, h uma relao que no verdadeiramente
essencial; embora ela seja importante, ela permanece "contingente" de uma
certa maneira. So antes condies tcnicas de utilizao do saber que esto em
relao direta com o exerccio de um poder de um poder fugidio mudana ouao exame, antes que as condies do saber ele mesmo; e nesse sentido que eu
no compreendo em absoluto o argumento. Alm do mais, o Sr. Foucault fez
observaes esclarecedoras que ele desenvolver sem dvida. Mas eu me ponho
a questo: h um elo verdadeiramente direto entre as obrigaes e as
exigncias do saber e as do poder?
Michel Foucault - Eu ficaria muito contente se se pudesse fazer assim, isto , se
se pudesse dizer: h a boa cincia, aquela que ao mesmo tempo verdadeira e
que no toca no mau poder; e depois evidentemente os maus usos da cincia,
seja sua aplicao interessada, seja seus erros. Se voc me afirma que assim,
pois bem, eu partirei feliz.
Nol Mouloud - Eu no digo tanto isso, eu reconheo que o elo histrico, o elo
contingente forte. Mas observo algumas coisas: que as novas investigaes
cientficas (aquelas da biologia, das cincias humanas) recolocam o homem e a
sociedade numa situao de no-determinao, lhes abrem vias de liberdade, e
assim os constrangem, por assim dizer, a exercer de novo decises. Alm do
mais, os poderes opressivos se apoiam raramente sobre um saber cientfico,
mas de preferncia sobre um no-saber, sobre uma cincia reduzida
preliminarmente a um "mito": conhece-se os exemplos de um racismo fundado
sobre uma "pseudo-gentica" ou mesmo de um pragmatismo poltico fundado
sobre uma deformao "neo-lamarckiana da biologia" etc. E enfim, eu concebo
muito bem que as informaes positivas de uma cincia chamem a distncia de
um juzo crtico. Mas me parece - e era o sentido prximo de meu argumento -
que uma crtica humanista, que retoma critrios culturais e axiolgicos, no
pode se desenvolver inteiramente nem culminar seno com o apoio que lhe traz
o conhecimento mesmo, fazendo a crtica de suas bases, de seus pressupostos,
de seus antecedentes. Isso concerne sobretudo aos Iluminismos que trazem as
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cincias do homem, da histria; e me parece que Habermas, em particular,
inclui essa dimenso analtica no que ele chama a crtica das ideologias,
daquelas mesmas que so engendradas pelo saber.
Michel Foucault - Eu penso que essa a vantagem da crtica, justamente!
Henri Gouhier - Eu gostaria de colocar uma questo. Estou absolutamente deacordo sobre a maneira que voc operou seu recorte e sobre a importncia da
Reforma. Mas me parece que h em toda a tradio ocidental um fermento
crtico pelo socratismo. Gostaria de perguntar a voc se a palavra crtica tal
como voc a definiu e empregou, no poderia convir para chamar o que
provisoriamente eu chamaria de um fermento crtico do socratismo em todo o
pensamento ocidental, que vai desempenhar um papel de retorno a Scratesnos sculos XVI e XVII?
Michel Foucault - Voc me pega numa questo mais difcil. Eu diria que esse
retorno do socratismo (o sente, o percebe, o v historicamente, me parece, no
ponto de transio dos sculos XVI e XVII) foi possvel apenas no fundo disso,
no sentido que dou muito mais importante, que foram as lutas pastorais e o
problema do governo dos homens, governo no sentido mais pleno e mais amplo
que tinha no fim da Idade Mdia. Governar os homens era os tomar pela mo, os
conduzir at a sua salvao por uma operao, uma tcnica de guiar detalhada,
que implicava todo um jogo de saber: sobre o indivduo que se guiava, sobre a
verdade em direo a qual se guiava...
Henri Gouhier - Sua anlise, voc poderia retom-la se fizesse uma exposio
sobre Scrates e seu tempo?
Michel Foucault - , com efeito, o problema verdadeiro. Aqui ainda, para
responder rapidamente sobre essa coisa difcil, me parece que no fundo, quando
se interroga Scrates de tal modo, ou mesmo - ouso ter de dizer - eu me
pergunto se Heidegger interrogando os Pr-socrticos no faz... no,
absolutamente, no se trata de fazer um anacronismo e de reportar o sculoXVIII ao V, ... Mas essa questo da Aufklrung que , eu creio mesmo assim
fundamental para a filosofia ocidental desde Kant, eu me pergunto se no ela
com a qual se varre de alguma forma toda a histria possvel e at s origens
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radicais da filosofia, de modo que o processo de Scrates, eu creio que se pode
interrog-lo validamente, sem nenhum anacronismo, mas a partir de um
problema que e que foi em todo caso percebido por Kant como sendo um
problema daAufklrung.
Jean-Louis Bruch - Eu gostaria de colocar a voc uma questo sobre uma
formulao que central em sua exposio, mas que foi exprimida sob duas
formas que me pareceram diferentes. Voc falou no fim da "vontade decisiva de
no ser governado" como um fundamento, ou um retorno daAufklrung que foi
o assunto de sua conferncia. Voc falou no incio de "no ser governado
assim", de "no ser governado de tal modo", de "no ser governado a esse
preo". Em um caso a formulao absoluta, no outro ela relativa, e em
funo de quais critrios? Para ter ressentido o abuso da governamentalizao
que voc traz a uma posio radical, vontade decisiva de no ser governado, eu
ponho a questo? E enfim, essa ltima posio no deve ela mesma fazer o
objeto de uma investigao, de um questionamento que, ele, seria de essncia
filosfica?
Michel Foucault - So duas boas questes.
Sobre o ponto das variaes de formulaes: eu no penso, com efeito, que a
vontade de no ser governado de jeito nenhum seja algo que se possa
considerar como uma aspirao originaria. Eu penso que, de fato, a vontade de
no ser governado sempre a vontade de no ser governado assim, dessa
forma, por elas, a esse preo. Quanto formulao de no ser governado em
absoluto, ela me parece ser de alguma espcie o paroxismo filosfico e tericode alguma coisa que seria essa vontade de no ser relativamente governado. E
quando no fim eu dizia vontade decisiva de no ser governado, ento a, erro de
minha parte, era no ser governado assim, dessa forma, dessa maneira. Eu no
me referia a algo que seria um anarquismo fundamental, que seria como a
liberdade originria absolutamente indcil e ao fundo de toda
governamentalizao. Eu no disse isto, mas isso no quer dizer que eu o excluaabsolutamente. Eu creio que, com efeito, minha exposio pra aqui: porque j
tinha durado tempo demais; mas tambm porque eu me pergunto... se se quer
fazer a explorao dessa dimenso da crtica que me parece to importante ao
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mesmo tempo porque ela faz parte da filosofia e no faz parte dela, se se
explorasse essa dimenso da crtica, no seria devolvido como base da atitude
crtica a algo que seria ou a prtica histrica da revolta, da no-aceitao de um
governo real, de um lado, ou, de outro, experincia individual de recusa da
governamentalidade? O que me surpreende bastante - mas eu sou talvez
perseguido porque so coisas de que me ocupo muito agora - que, se essamatriz da atitude crtica no Mundo ocidental, preciso busc-la na Idade Mdia
em atitudes religiosas e concernindo ao exerccio do poder pastoral, mesmo
assim muito espantoso que voc visse a mstica como experincia individual e a
luta institucional e poltica fazer absolutamente corpo, e em todo caso
perpetuamente entregues um ao outro. Eu diria que uma das primeiras grandes
formas da revolta no Ocidente foi a mstica; e todos esses focos de resistncia autoridade da Escritura, mediao pelo pastor, se desenvolveram seja nos
conventos, seja no exterior dos conventos, ou nos laicos. Quando se v que
essas experincias, esses movimentos da espiritualidade serviram muito
freqentemente de vestimentas, de vocabulrio, mas, mais ainda, de maneiras
de ser, e de suportes esperana de luta que se pode dizer econmica, popular,
que se pode dizer, em termos marxistas, de classes, eu acho que tem-se a
alguma coisa de fundamental.
No percurso dessa atitude crtica que me parece que a histria encontra a
origem nesse momento, no preciso interrogar agora o que seria a vontade de
no ser governado assim, desse modo etc., tanto sob a sua forma individual de
experincia, quanto sob a forma coletiva? preciso agora colocar o problema da
vontade. Ento, se dir que isso vai de si, no se pode retomar este problemaseguindo o fio do poder, sem chegar, claro, a colocar a questo da vontade.
Era to evidente que eu teria percebido isso antes; mas como esse problema da
vontade um problema que a filosofia ocidental tratou sempre com infinita
precauo e dificuldade, digamos que eu tentei evit-la na medida do possvel.
Digamos que ela inevitvel. Eu lhes dei a consideraes de trabalho em vias
de ser feito.
Andr Sernin - De qual lado voc se ligaria antes de mais nada? Seria do lado
de Auguste Comte, eu esquematizo, que separa rigorosamente o poder
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espiritual do poder temporal, ou, ao contrrio, daquele de Plato que dizia que
as coisas no iriam nunca to bem que os filsofos no seriam eles os chefes do
poder temporal?
Michel Foucault preciso verdadeiramente escolher?
Andr Sernin - No, no preciso escolher, mas para qual lado voctenderia...?
Michel Foucault - Eu tentaria insinuar-me.
Pierre Hadjl-Dimou - Voc nos apresentou com sucesso o problema da crtica
em seu elo com a filosofia e chegou s relaes entre poder e conhecimento. Eu
queria trazer um pequeno Iluminismo a propsito do pensamento grego. Eupenso que esse problema j foi colocado pelo Sr. Presidente. "Conhecer" ter o
logos e o mythos. Eu penso que como aAufklrung, no se chega a conhecer; o
conhecimento no somente a racionalidade, no est somente na via histrica
do logos, h uma segunda fonte, o mythos. Se se refere discusso entre
Protgoras e Scrates, quando Protgoras coloca a questo acerca da Politeia,
do direito de punir, de seu poder, ele diz que vai especificar e ilustrar seu
pensamento a propsito de mythos - o mythos est ligado ao logos porque h
uma racionalidade: mais ele nos ensina, mais belo . Eis a questo que eu
queria acrescentar: suprimindo uma parte do pensamento, o pensamento
irracional que acontece no logos, isto o mythos, chega-se a conhecer as fontes
do conhecimento, o conhecimento do poder que tem um sentido mtico ele
tambm?
Michel Foucault - Eu estou de acordo com a sua questo.
Sylvain Zac - Eu queria fazer duas observaes. Voc disse, com justia, que a
atitude crtica podia ser considerada como uma virtude. Ora, h um filsofo,
Malebranche, que estudou esta virtude: a liberdade do esprito. Por outro lado,
eu no estou de acordo com voc sobre as relaes que estabelece em Kant
entre seu artigo sobre o Iluminismo e sua crtica do conhecimento. Esta fixa
evidentemente limites, mas ela mesma no tem limite; ela total. Ora, quando
se l o artigo sobre o Iluminismo, v-se que Kant faz uma distino muito
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importante entre o uso pblico e o uso privado. No caso do uso pblico, essa
coragem deve desaparecer. O que faz...
Michel Foucault - o contrrio, pois o que ele chama o uso pblico ...
Sylvain Zac - Quando algum ocupa por exemplo uma cadeira de filosofia
numa universidade, a ele tem o uso pblico da palavra e no deve criticar a
Bblia: de outro lado, no uso privado, ele pode faz-lo.
Michel Foucault - o contrrio, e isso que muito interessante. Com efeito,
Kant diz: "h um uso pblico da razo que no deve ser limitado". O que esse
uso pblico? aquele que circula de sbio em sbio, que passa pelos jornais epelas publicaes, e que faz apelo conscincia de todos. Esses usos, esses
usos pblicos da razo no devem ser limitados, e curiosamente o que ele
chama o uso privado, o uso, de alguma forma, do funcionrio. E o funcionrio,
o oficial, diz ele, no tem o direito de dizer ao seu superior: "eu no te obedeo
e tua ordem absurda". A obedincia de cada indivduo, enquanto ele faz parte
do Estado, a seu superior, ao soberano ou ao representante do soberano, isso
que ele chama curiosamente o uso privado.
Sylvain Zac - Eu estou de acordo com voc, eu me enganei, mas resulta
entretanto que h nesse artigo limites manifestao da coragem. Ora, esses
limites, eu os encontrei por todo lado, em todos os Aufklrer, em Mendelssohn
evidentemente. H, no movimento da Aufklrung alemo, uma parte de
conformismo que no se acha mesmo no Iluminismo francs do sculo XVIII.
Michel Foucault - Estou completamente de acordo, no vejo bem em qu isso
contesta o que eu disse.
Sylvain Zac - Eu no creio que havia um elo histrico ntimo entre o
movimento da Aufklrung que voc colocou no centro e o desenvolvimento da
atitude crtica, da atitude de resistncia no ponto de vista intelectual ou noponto de vista poltico. Voc no acredita que se possa indicar esta preciso?
Michel Foucault - Eu no creio, de um lado, que Kant tenha se sentido
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estrangeiro aaAufklrung que era mesmo para ele sua atualidade e no interior
do qual ele intervinha, no seria seno por esse artigo daAufklrung, mas por
outros negcios...
Sylvain Zac - A palavra Aufklrung se encontra emA Religio nos limites da
simples Razo, mas ela se aplica ento pureza dos sentimentos, alguma
coisa de interior. Ela produziu uma inverso como em Rousseau.
Michel Foucault - Gostaria de terminar o que estava dizendo... Ento, Kant se
sente perfeitamente ligado a esta atualidade que ele chama deAufklrung e que
ele tenta definir. E em relao a esse movimento da Aufklrung, me parece que
ele introduz uma dimenso que ns podemos considerar como mais particular
ou ao contrrio como mais geral e como mais radical que essa: a primeiraaudcia que se deve empreender quando se trata do saber e do conhecimento,
conhecer o que se pode conhecer. isso a radicalidade e para Kant, alis, a
universalidade da sua empreitada. Eu acredito nessa ligao, quais que sejam
os limites, claro, das audcias dos Aufklrer. Eu no vejo em qu, se voc
quer, o fato da timidez dosAufklrermudaria o que quer que seja nessa espcie
de movimento que Kant fez e que, creio eu, ele esteve um pouco consciente.
Henri Birault - Eu creio, com efeito, que a filosofia crtica representa assim um
movimento ao mesmo tempo de restrio e de radicalizao em relao
Aufklrung em geral.
Michel Foucault - Mas a ligao com aAufklrung era a questo de todo mundonessa poca. O que ns estamos dizendo, o que esse movimento que nos
precedeu um pouco, ao qual pertencemos ainda e que se chama Aufklrung? A
melhor prova, que o jornal tinha que publicar uma srie de artigos, aquele de
Mendelssohn, aquele de Kant... Era a questo da atualidade. Um pouco como
ns nos colocaramos a questo: o que a crise dos valores atuais?
Jeanne Dubouchet - Gostaria de lhe perguntar o que voc coloca como matria
no saber. O poder, eu creio ter compreendido, j que ele era questo de no ser
governado: mas qual ordem de saber?
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Michel Foucault - Justamente, a, se eu emprego essa palavra, ainda uma vez
essencialmente a fins de neutralizao de tudo o que poderia ser, seja
legitimao, seja simplesmente hierarquizao de valores. Se voc quer, para
mim - to escandaloso quanto isso possa e deva, com efeito, parecer aos olhos
de um sbio ou de um metodlogo ou mesmo de um historiador das cincias -
para mim, entre a proposio de um psiquiatra e uma demonstraomatemtica, quando eu falo de saber, eu no fao, provisoriamente, diferena.
O nico ponto pelo qual eu introduziria diferenas, de saber quais so os
efeitos de poder, se voc quer, de induo - induo no no sentido lgico do
termo - que essa proposio pode ter, de um lado, no interior do domnio
cientfico ao interior no qual se a formula - as matemticas, a psiquiatria etc. -
e, de outro lado, quais so as redes de poder institucionais, no discursivas, noformalizveis, no especialmente cientficas as quais ele est ligado desde
ento quando colocado em circulao. isso que eu chamaria o saber: os
elementos de conhecimento que, qual seja seu valor em relao a ns, em
relao a um esprito puro, exercem no interior de seu domnio e no exterior dos
efeitos de poder.
Henri Gouhier - Creio que me resta agradecer a Michel Foucault por nos ter
proporcionado uma sesso to interessante e que vai dar lugar certamente a
uma publicao que ser particularmente importante.
Michel Foucault - Eu agradeo a vocs.